sexta-feira, 27 de outubro de 2006

COMO NOSSOS PAIS
"Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos.
Quero lhe contar como eu vivi,
E tudo que aconteceu comigo..."


Época de eleição na minha infância era uma festa. Ai, que divertido era ver e decorar as músicas dos candidatos, pegar aquele monte de papéis com fotos e números para brincar de escolinha ou escritório... Como era legal ver meus pais, tios e avós discutindo sobre o passado e as metas de cada candidato, tão inflamados e cheios de razão, enquanto tentava entender o que eles diziam. Como era bacana entrar com meus pais na cabine de votação e participar, com eles, desse ato interessante e incompreensível aos olhos de uma criança. Meu pai, tão bonzinho, deixava que eu fizesse o "X" na cédula - no lugar que ele indicava, claro - e eu saía do colégio me sentindo importante. Provavelmente não sabia por quê, mas me sentia mais que importante; assim como minha mãe e meu pai, que tinham acabado de sair de um período de nulidade de direitos políticos e ali podiam votar em quem quisessem, do jeito que quisessem.

"Viver é melhor que sonhar.
Eu sei, o amor é uma coisa boa.
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida
De qualquer pessoa."

Passou a ser mais sério e prazeroso participar das eleições na época da minha adolescência. Não demorou para que eu abraçasse a causa de um partido que me parecia ser mais do que justa. Participei das campanhas, entrei em grupos de discussão, ia ao comitê e comícios, ajudava a bolar estratégias de campanha, fazia boca de urna, comecei a ler os jornais com atenção, conheci gente apaixonada que me ensinou boa parte do que eu sei hoje. Gastei meu latim em discussões intermináveis sobre a verdade das pessoas e do universo, sobre a necessidade da justiça social e da participação democrática. Li livros e participei de conversas que talvez só deveria ter lido e ouvido depois, mas eu adorava me sentir participativa. E esperava ansiosamente pelo dia de poder votar para coroar tudo isso, concretizando os meus sonhos. Como toda adolescente, eu acreditava que ações bem intencionadas eram mágicas.

"Por isso, cuidado, meu bem:
Há perigo na esquina.
Eles venceram,
E o sinal está fechado pra nós, que somos jovens.
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz."

Quando fiz 16 anos, no dia seguinte fui ao cartório fazer meu título de eleitor que, eu acreditava, era também um título de cidadã, um comprovante da minha consciência e responsabilidade social. Lembro-me da primeira vez que votei. Eu estava feliz. Muito, muito, muito feliz. E desde então, dia de votar sempre foi um dia feliz. Um dia onde eu me sentia participante. Um dia de esperança. Um dia de voz. Um dia para sentir-me parte pensante e atuante de um corpo inteiro chamado sociedade. Mesmo quando tive que escolher entre o ruim e o pior em um segundo turno, eu me senti feliz em poder votar. Aquele gosto - talvez da infância, talvez da adolescência - acompanharam todos os meus dias de votação até hoje.

"Você me pergunta pela minha paixão,
Digo que estou encantada com uma nova invenção
Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração"

O tempo passou, muita água correu debaixo da ponte; e não vou ficar falando aqui das minhas decepções e da minha inconformidade com a mentalidade política brasileira. Não vou ficar dando razões que todos conhecem para o meu desencanto, nem justificando ninguém. Toda essa sujeira não interessa nem para reclamar ou ficar me lamentando, mas sim parar e repensar. Apenas vou dizer que estava indiferente e, nos poucos momentos em que me envolvi, não consegui enxergar um horizonte, um bom motivo... Quase cheguei a dizer que são todos iguais, e essas bobagens que as pessoas falam todas as horas por aí. Quase repassei alguns das centenas de e-mails ignorantes que recebi ultimamente. E, até hoje de manhã, eu pensei que o próximo domingo, dia de votar, seria pela primeira vez, um dia triste. Mas mudei de idéia por causa do Belchior e da Elis.

"Já faz tempo, eu vi você na rua.
Cabelo ao vento, gente jovem reunida.
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais.
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo que fizemos,
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais."

Foi a Elis quem soou no rádio cantando uma música composta quando meus pais ainda nem pensavam em me trazer ao mundo. Essa canção, que me fez chorar tantas vezes, hoje molhou meus olhos de novo. A canção fala sobre o tempo e a juventude, sobre a maturidade e a impotência, sobre ilusão e decepção, sobre ganhar e perder...sobre ter esperança no novo que ainda virá. E a voz assertiva da Elis bateu em mim, pra me fazer perceber que, embora as pessoas sejam tão previsíveis e as histórias - inclusive políticas - acabem praticamente do mesmo jeito, é importante que tentemos fazer a nossa parte. É importante não desistir. É importante ter a paixão de um jovem com cabelo ao vento na rua para poder chegar a ser um velho que lembra do passado com um tom saudosista e melancólico, mas agradável. É importante acreditar até para poder desacreditar. Há coisas que devem ser feitas. E é nosso papel fazê-las, sem fugir, sem reclamar... Apenas fazer.

"Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não.
Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém..."

Sinto-me feliz por poder votar quando vejo, ouço e leio notícias de lugares onde a democracia não existe - sequer como farsa. Sinto-me feliz por ter o direito intransferível de votar, mesmo obrigada, quando milhares de pessoas no mundo sequer sonham em expor o que pensam e sentem através do voto. Sinto-me feliz por não ser obrigada a expor o meu voto publicamente, a não ser que eu queira, e por isso não ser vítima de abusos e coações. Sinto-me feliz por saber ler, por ter o mínimo de formação crítica, por ter aprendido um pouco sobre a teoria e a prática da política para garantir um mínimo de consciência com o meu voto. Sinto-me feliz por votar já não tendo tantas ilusões, por votar já sem heróis e sabendo que as pessoas são apenas pessoas - tão sujas e tão vulneráveis diante do poder - falíveis e humanas, mas ainda assim, pessoas. Sinto-me feliz por poder votar em respeito à luta de muita gente que brigou, morreu e fez o que pôde para que eu fosse livre para expressar minha opinião hoje, inclusive aqui, neste espaço, sem ser agredida ou desprezada por isso. Sinto-me feliz por poder votar e fazer parte da história do mundo. E, ouvindo Elis, eu pensei que a maior razão para que eu me sinta feliz em votar, é que ainda posso escolher. E quando há escolha... É porque há opção.

"Você pode até dizer que eu tô por fora,
Ou então que eu tô inventando.
Mas é você que ama o passado e que não vê,
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem."

Uma vez ouvi que nada volta atrás, pois a evolução é inerente ao tempo. Embora a passos muito lentos, a humanidade é melhor hoje do que ontem. É melhor este ano do que no ano passado. É melhor nessa época do que em outras épocas. Não se trata de ser otimista, mas sim realista. Sarney foi melhor que Figueiredo. Collor foi melhor que Sarney. FHC foi melhor que Collor. E Lula foi melhor que FHC. Provavelmente, depois de Lula virá um outro um pouco melhor, e assim vamos caminhando, em ciclos, com altos e baixos, mas sempre para frente. O passado não volta, embora o ser humano tenha uma tendência esquisita de achar que tudo antes era melhor do que é hoje. E o futuro? Bem, o futuro é uma incógnita. Tudo pode acontecer - até um operário moralizador virar ícone de corrupção e um ex-professor, sociólogo e exilado político acreditar no neoliberalismo. A diferença é que, cada vez mais, escolhemos às claras, com os olhos bem abertos. Ainda há muita sujeira por cima do que vemos. Mas já enxergo melhor do que enxergava dez anos atrás. E que bom que é assim. É positivo.

"Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude,
Tá em casa, guardado por Deus, contando o vil metal."

A despeito da palhaçada, das cartas marcadas, dos escândalos, das decepções e da impunidade, como diria o Caetano, se o mundo é um lixo, EU NÃO SOU. E é por isso que eu escolho com cuidado meus candidatos, o mesmo cuidado que sempre tive (e agora até mais liberta do estigma da ideologia que eu achava que era minha). E, no domingo, eu vou votar feliz. Porque ninguém vai me fazer desistir de expressar minha vontade política. Nem mesmo os políticos.
Thalita Marinho


P.S.: Ah! Leia Frei Betto, o Inagaki e escute Elis. Quem sabe assim, se você estiver desanimado, ainda consiga compartilhar comigo dessa felicidade. Feliz eleição pra você.

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